Infiltrado e não apenas na Klan




Se você vai ao cinema só para se distrair, reflita melhor sobre sua distração. É nessa pegada que o mais recente trabalho de Spike Lee chega aos cinemas brasileiros. O diretor volta às suas origens exibindo o seu melhor estilo: consciência, complexidade e contestação. E antes que alguém desanime de assistir o filme porque só quer se divertir, não falta humor, inteligência e muita música boa.

Famoso pela indicação de “Faça a Coisa certa” (1989) ao Oscar e pelo sucesso de “Malcom X” (1992), Spike Lee tornou-se uma referência na indústria cinematográfica para tratar da questão do negro norte-americano. Mas sua verve crítica custou caro quando o diretor tentou ampliar as possibilidades de trabalho. Os fãs queriam ver o Spike Lee virulento, sarcástico e politizado. Pois bem, demorou um pouco mas o ansiado Spike Lee está de volta. E seu retorno não decepcionou!

A informação de que Spike Lee ministra aulas de Cinema na Universidade de Nova York por um lado deixa os cinéfilos com água na boca. Por outro lado favorece compreensões nas mudanças sutis, porém significativas, no trabalho de um diretor mais maduro. Em “Faça a Coisa Certa” Spike Lee ousou, desprendeu energia para exibir no cotidiano das ruas do Brooklin a complexidade das questões étnicas dos EUA. Em seu mais recente trabalho o prosaico alongado dá lugar para uma narrativa mais pontuada, didática e bem definida, como episódios que abrem com uma interrogação e fecham com clímax.

Em “Infiltrado na Klan” há um recurso cinematográfico de montagem da narrativa extremamente eloquente, devota de uma noção filosófica do tempo cíclico. Não chega a ser uma singularidade do autor, no entanto, o modo de se apropriar da técnica reitera a maestria e maturidade de Spike Lee. Inicia o filme com cenas do período da Guerra de Secessão dos EUA, entre 1861 e 1865, motivada sobretudo pela controvérsia a respeito da escravidão. Se desenvolve na década de 1960, tendo como guia a atuação de um policial negro em uma conjuntura de animosidades informadas por questões raciais. De um lado a expansão de uma associação de supremacistas brancos cultuando a origem idílica de uma América branca e cristã. Em paralelo o movimento dos Panteras Negras, cujo objetivo era se proteger contra e violência institucionalizada contra os negros, lutar pela igualdade de direitos e resignificar padrões estéticos em prol da valorização do negro. Finda usando imagens produzidas por câmeras amadoras no trágico episódio de Charlottesville, quando um carro investiu contra uma manifestação da direita radical dos EUA que pregava o retorno da América Branca. 

A concepção cíclica da montagem do filme pode parecer um spoiler, mas está bem longe disso. Afinal, o filme conta a história de Ron Stallworth, o primeiro detetive negro a ingressar no Departamento de Polícia de Colorado Spring. É uma adaptação sensível e muito bem humorada do livro homônimo, baseado no relato do próprio Ron Stallworth.

Outro detalhe interessante, porém complicado de captar para quem se atém apenas às legendas, é o modo de falar dos personagens. Spike Lee sabe como ninguém utilizar a linguagem como marcador social. E a oratória como uma arte muito bem desenvolvida pelos norte-americanos, como um precioso instrumento político, é contraposta em ritmo, uso das palavras e posicionamento de quem fala e de quem ouve, para fazer refletir a performática imbricada com ideais.  

A pesquisa de arte, o figurino, a caracterização e as músicas estão de parabéns. Certamente quem viveu o período fez um mergulho profundo na atmosfera da época. E quem não viveu, consegue entender porque alguns elementos estéticos tornaram-se clássicos, no sentido de que são atuais sempre. 

E do passado que se atualiza fica o alerta para a ascensão dos ideais de pureza e supremacia racial que se revertem em posicionamentos políticos de desprestígio, violência e combate à diversidade. O fenômeno nos EUA é endossado por um presidente cujos discursos são torpes e inconsequentes, acalorando os ânimos e alimentando um clima de tensão permanente entre os cidadãos. Antes de um fenômeno isolado, trata-se de um problema alastrado pelo mundo. 

Em uma entrevista descontraída para divulgação do filme, Spike Lee falou por extenso o que no filme depende de interpretação. Mencionou que as lideranças políticas têm o dever de se manifestar pela união e paz. Mas no episódio de Charlottesville o presidente não apenas perdeu a oportunidade de unir o país como proferiu um discurso que aumentava o acirramento político e racial. 

O filme é um retrato caricato e indesejável dos EUA, mas sussurra para o público: E em seu país, irmão? Tá tranquilo? Pois bem, qualquer semelhança entre o “América first”, e o “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” não dá para colocar na coincidência. É a evidência de que temos muito passado pela frente.

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