A barca

Um dos direitos que mais e melhor faço uso é o de ir e vir. Estou sempre indo ou vindo. E fica fácil supor o quanto os meios de transporte me causam curiosidade, e o quanto as viagens ocupam a minha mente.
Nos centros urbanos a locomoção não é das mais agradáveis. Os transportes coletivos não são excelentes apenas para ir de um lugar a outro. Servem para paquerar, ler, se aborrecer bastante e até para pensar.
Desde a mais tenra idade eu entro na barca ressabiada. Nunca confiei na proporção entre passageiros e coletes salva-vidas. Já cheguei a paranóia de contar as pessoas e os coletes que estavam ao alcance dos meus olhos. Claro, a quantidade de passageiros, mesmo que apenas na minha mente, era maior. Imediatamente eu já fazia cara feia para um sujeito ou outro, imaginando nele um provável esperto que se adiantaria e deixaria sem colete os indefesos: idosos, mulheres e crianças. Eu compunha cenas que arrancariam os Oscars de Titanic.
Outro problema em relação as Barcas é a correria. Sim, as pessoas cismam de que estação hidroviária é local de apostar corrida. A barca não é pequena. Cabem muitas pessoas sentadas. E ainda que por ventura não consigam sentar, viagem é rápida, não ultrapassando 20 minutos. Mas, não importa o horário, não importa a quantidade de pessoas que irão se dirigir à embarcação, quando abrem-se as porteiras, dá-se início a uma gananciosa competição.
Às vezes me pego narrando, tal qual um grande prêmio Brasil de Hipismo. No primeiro pário Montpellier, Mutch better, Cosset, Ash Power, Mr. Mac Carter, Corunilha, Fast Mary e Rabugento. Minha pule é no Ash Power, pagando 20/1. É quase um azarão!
Foi dada a partida para o primeiro páreo do programa, Cosset em ligeira vantagem, Ash Power avança por fora, Montpellier tomou a ponta, livrou cabeça a pessoço, Corunilha se aproximando. Mutch better aparece em quinto, Fast Mary em sexto por fora e Rabugento por último. Entram pela grande curva, três brigando pela colocação, Cosset, Ash Power e Montpellier. Contornando a curva de chegada, entrando na reta final, por dentro Ash Power, por fora Corunilha com ligeira vantagem. Vão lutando pela primeira colocação Corunilha e Ash Power, Ash Power dominou levantando meio corpo de vantagem, atrás a briga é pelo segundo Corunilha e Mutch Better, cruza a faixa final Ash Power, seguido de Corunilha com um focinho de vantagem de Mutch Better em terceiro. EMOCIONANTE!
Saudade mesmo tenho da época em que a Barca não era privatizada. Devo confessar que só vejo poesia no que algumas pessoas chamam de “ao dará”, “bundalelê, “à Bangu” ou termo que equivalha a pouco caso. Eram inúmeros vendedores que passeavam de um lado a outra da barca suas latas com carvão em brasa aquecendo embalagens de amendoin torrado, embrulhados num cone de papel pardo. A fumaça que emanava dos latões dava à barca um ar misterioso, sobretudo quando a noite. O cheiro da brasa entranhava na roupa e no cabelo. Você chegava em qualquer lugar e por algum motivo mistério as pessoas tinham a certeza de que você veio de barca.
Havia sempre uns meninos de rua trabalhando de engraxates. Passeavam pela barca com a escova numa mão e seu caixote de madeira na outra, apoiado nas costas, perguntando: Vai graxa? Hoje em dia seria complicado achar um sapato para engraxar, se muito um tênis.
Ambulantes, engraxates, mas a vida na barca não era só trabalho. Havia o lazer. Um vagabundo sentava-se na proa, que não tinha qualquer proteção ou restrição, e com um violão ia desafinadamente cantando músicas de gosto nada duvidoso (ruim sem dúvida alguma), entretendo os que se aproximavam.
Pode-se notar que a socialização tinha mais vez. Havia ainda o lado lúdico, o carteado amigo na barca. Os engraxates e uns vagabundos covardes jogavam sua ronda valendo. Vez por outra causando até algum desentendimento. Logo sanado sem maiores escândalos, pois se desse muito na vista o jogo poderia acabar sendo proibido naquele ambiente tão acolhedor.
Na categoria esporte, havia a corrida com barreira. A corrida era para não perder a barca, e a barreira, lógico, a catraca. Um clássico pular a catraca da barca. Há pessoas maldosas que poderiam ver a corrida como mero impulso para o salto, mas eu compreendo a modalidade esportiva na íntegra.
Por sinal, ainda no quesito esporte, colocando a toda prova o condicionamento físico, reflexo e elasticidade, havia a modalidade mais perigosa: salto em distância. Quantas vezes, barca saindo, já um metro, metro e meio, o malandro não vinha no pique e abria o compasso para pular da rampa até a proa. Isso sob o atento olhar de uma vasta platéia. Valendo até o cumprimento ou aplauso de uns e outros, dependendo da graça e do grau de dificuldade do salto. Contudo, errando a passada o banho era certo! E sabe como é a água da baía de Guanabara, né? Se não morrer afogado, a intoxicação é infalível.
E o namoro? Ahhh, já vi cenas que deixariam Nelson Rodrigues ruborizado. Certa vez, tendo testemunhado uma voluptuosa atuação, ao sair da barca constatei que o casal sem limites para o amor era conhecido meu. Claro, casados. Ele tinha sua esposa, e ela tinha seu marido. Afinal, não se beija nosso companheiro de residência na barca e com tanto furor. Chega a ser desrespeitoso!
E hoje, o que tem na barca? Vendedoras de cartões Tim, Oi, Claro, Vivo! Lanchonete, toda iluminada, cheia do que eu não quero comer e por um preço que não me agrada pagar. Vendedores de colete (insulto ao ser humano usar coletes, tenho aversão) vendendo mate, jornal e pão de queijo. Muito pouco estimulante!

Comentários

Lu Ribeiro disse…
Tu é muito figura! Continua escrevendo pra kct, acho até q vou tirar o meu blog do ar, fiquei tímida diante de tanta eloquência...
bjão

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