Ir vendo e aprendendo

Fazendo trocadilho com ditado popular. Do jeito que lembrei da história o ditado já me veio trôpego. Ocorreu há cerca de cinco anos, porém me lembro como se hoje fosse.
Fui para Salvador. Essa curta sentença, se detalhada e estendida, nos oferece uma compreensão menos garbosa e mais dramática. Deixe-me expressar mais e melhor: Fui para Salvador, de ônibus, com meu pai, minha mãe e minhas duas irmãs. Ta bom pra você? Faltou apenas o detalhe de misericórdia: só tem uma coisa que eu odeio mais do que a Bahia, os baianos.
Se meu detido leitor tiver capacidade ilustrativa, parca que seja, já vai conseguir compor o cenário: É dramático! E vários elementos serviam para sofisticar essa intrépida aventura. O primeiro deles a localização das nossas poltronas no ônibus. Nós cinco estávamos tais e quais guardiões inveterados do que chamam de banheiro. Sim, chamam de banheiro, mas ao meio da viagem aprendi que aquilo, na melhor das hipóteses, não passava de um tambor de amônia. Na pior das hipóteses uma estação de tratamento de esgoto.
Feliz seria a viagem se o inconveniente fosse apenas essa tal vigília, acompanhada dos odores e do bater incessante da porta do banheiro. Meu pai, devo admitir, foi o que mais se fudeu. Nas primeiras 4 horas de viagem caiu uma chuva tão forte, mas tão forte que Noé já tratava de cortar madeira, juntar pregos, e deixar os bichos sob aviso. Comecei a ouvir um barulho repetitivo que se eu não estivesse no ônibus juraria trata-se de um pinga pinga num saco plástico. No que depender de mim os otorrinolaringologistas morrem de fome, pois era mesmo isso o que eu ouvi. A água da chuva ganhava o ônibus, mais precisamente sobre o assento do meu pai que se cobria com um saco de mercado. Aprendi que as vezes é preciso mais do que uma vida pra ver tanta miséria. Calma, Salvador estava a caminho e aquilo não passava de uma previa. De mais a mais nem dava pra reclamar, afinal de contas meu pai foi jogador de water pólo, tem bastante intimidade com a água.
O ônibus seguia firme, alterando a rota por conta das condições precárias das estradas em virtude das chuvas. Parece noticiário do Jornal Nacional, mas não é. É a realidade das rodovias do nosso Brasil. A precariedade e o pouco caso do público é uma perversidade manjada no intuito de legitimar a privatização. Já estávamos Minas Gerais a dentro e eu pensava na morte como a saída digna e rápida daquela situação. Eu respirava e suspirava ódio, refletindo sobre o quê eu estava fazendo ali naquele lugar, naquelas condições. Uniu-se ao odor de amônia um cheiro de mofo, umidade, promovido por aquele pequeno vazamento que meu pai aparou com saco plástico.
O ar condicionado do ônibus era qualquer coisa! Oras parecia uma câmara frigorífica, oras o ar ficava rarefeito e morno. Aprendi que meio termo é uma utopia.
E o que dizer dos locais de parada para alimentação? Nunca comi tanto biscoito de polvilho na minha vida. Era o que mais se aproximava da honestidade depois dos picolés que já vêem embalados de fábrica. Minha mãe, que tem um apetite de quem bate laje, comprou algo que abusava da denominação coxinha de galinha. Abriu a coxinha ao meio para apreciar o recheio e logo notou que havia uma liga, como baba de quiabo. Foi assim que minha família foi unânime em se vingar nos biscoitos. Aprendi que qualquer tapurú se alimenta melhor do que quem viaja de ônibus do Rio de Janeiro para Salvador!
Claro que nem tudo é só ruim. A sociabilidade no ônibus é interessante. Nas paradas eu reparava numa mulher com duas crianças. Ela fazia uma espécie de ritual. Ajeitava as crianças, penteava os cabelos, guardava uns brinquedos e de uma bolsa pegava uma foto e ficava olhando com devoção. Por vezes, com a foto em mãos, falava qualquer coisa que eu não ouvia muito bem. Imaginei que fosse uma oração pra guiar bem a viagem, pra proteger ela e os filhos, que fosse a foto do tão querido e saudoso marido, ou algo do gênero. Notando a minha persistente observação, lá pra quarta parada ela me contou o segredo. Aquela foto não era de nenhum santo ou entidade, não era de ninguém se não dela mesma, só que de uma época em que ela tinha trinta e cinco quilos a mais do que então. Todas as vezes que iria fazer uma refeição, ou beliscar qualquer coisa, ela se concentrava naquela foto, dizia algumas palavras de pavor e negação àquela imagem, e tomava isso como estímulo para não se exceder. Achei aquilo forte e um pouco triste, mas ela sorria e dizia que funcionava perfeitamente. Afirmava que assim fazia há seis anos. Fica a dica de terapia de choque aos que desejam permanecer magros. Aprendi que podemos ser devotos a tudo e qualquer coisa.
Vinte e quadro horas depois de entrar no ônibus, com muitos e muitos quilômetros rodados, chegamos em Salvador. A primeira visão que tivemos da cidade era de lamentar duas vidas: um gigantesco templo da Igreja Universal. O diabo não teria capacidade de pensar algo tão vil. Ao descer do ônibus ao invés do alívio me tomava o desespero: a volta! Pensando nessas coisas foi que eu perdi quase que totalmente o medo da morte. Quando alguém chega pra mim e diz que foi a Salvador a primeira frase que brota em minha mente é “meus sentimentos”. Aprendi que o prazer e o desprazer, a felicidade e a infelicidade, o bonito e o feio, o bom e o ruim são apenas considerações pessoais. Você leu as minhas. E você, tem considerações para compartilhar?

Comentários

Cris Medeiros disse…
Não conheço Salvador, mas depois do post acho que não vou não.... ehehehe

Beijocas
sevejocosilva disse…
Conheço Salvador. Lá já estive e convivi, por uma semana, com aquele povo. Subi e desci ladeiras, visitei igrejas e outras coisas do gênero. Você teve o infortúnio de fazer uma triste e infeliz viagem (pois só dela o texto trata). Daí, todo o azedume que o texto expressa.
Maldito disse…
belo diario de bordo!
Voodoo disse…
Oi,

Já estive em Salvador sim, não gostei também não.
bjs

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