A dama podia até ser de ferro, mas minha paciência não

O esperado filme que retrata a vida da mulher que transformou o panorama político e econômico mundial chegou aos cinemas. Margaret Thatcher, ex- primeira ministra britânica, conhecida como A Dama de Ferro, ganha vida na formidável interpretação de Meryl Streep.

Aos que esperam um filmaço, alinhado politicamente, com narrativas condizentes a relevância política da controversa ex primeira ministra, podem sossegar. E mesmo os que vibram com produções visualmente elaboradas, com grande estudo de arte, ambições técnicas ou demais ousadias, não precisam se animar também. O filme do ponto de vista técnico é apenas correto. O roteiro é fraco, complicado por fluir “pisando em ovos”, na confortável posição “em cima do muro”. E a despeito das esvaziadas expectativas, o filme é fértil para refletir.

Se política ou economicamente a produção é superficial, o mesmo não vale, por exemplo, para a construção de uma identidade a partir do gênero. Outro viés interessante é a adaptação da comunicação política ao desenvolvimento dos meios de comunicação.

Na famigerada oposição razão e emoção a identidade de Margaret se expressa. E tal oposição não é de se estranhar em se tratando de uma dama dita de ferro. A direção foi incisiva em demonstrar que por trás da atuação política firme havia uma mulher sensível. Filha de um pequeno comerciante, desde jovem as ambições pessoais e o desejo de fazer diferença indicavam seus investimentos. Formou-se em Oxford, uma vitória para sua origem familiar, e ingressou na política, um desafio para uma mulher em meados de 1970.

Entre a função familiar e a profissional o filme se apropria dos conflitos vividos por Thatcher. Fora uma personagem que rompeu com padrão de gênero de sua época, pois não se conformou ao papel de dona de casa, atuando politicamente numa ala conservadora. E conseguir respeito num universo masculino por certo não foi uma tarefa pequena.

Para alcançar o cargo de primeira ministra assessores foram essenciais. Thatcher tinha em si potencial para o cargo, como bem notaram os assessores. Todavia, era preciso convencer o eleitorado disso. Era preciso compor e propagar uma imagem carismática, que inspirasse respeito e confiança. Com esse objetivo apagaram em Thatcher os signos visuais associáveis a uma classe social demasiadamente confortável e insensível aos desfavorecidos, e introduziram um tom de proximidade com pequenos empresários e a classe trabalhadora esperançosa pela reversão do quadro de crise no pós guerra. Funcionou para a candidatura, mas não exatamente para o exercício do cargo.

Eis que o exercício da primeira ministra era tão cheio de contradições quanto sua trajetória de vida. Dizia-se encantada com a postura da América por não se mirar na história, como ocorre na Europa, e sim num potencial futuro. A ênfase no futuro é a única coisa possível numa América “sem passado”; o futuro como guia das ações é um argumento bastante equivocado quando se está à frente de um dos primeiros Estados Modernos, que por seu turno preserva e se orgulha de uma monarquia. E por mais controversos os argumentos, seguia a risca a concepção de que as políticas de bem estar social eram demasiadamente onerosas ao Estado, e culpadas pelos baixos rendimentos da economia mundial. Enxugou as contas do Estado, reduzindo verbas na educação, segurança, transportes e demais serviços básicos como a coleta de lixo, além de dar início às privatizações.

Como ponto alto do filme está a Guerra das Malvinas. O episódio é de pouca importância do ponto de vista do “desenvolvimento” ou “progresso”, porém relevante para enfatizar toda a firmeza e arrogância da líder, exibir para o mundo o potencial beligerante da Inglaterra, e exaltar os ânimos de uma população que abatia-se no que diz respeito ao orgulho pátrio.

Finda a carreira política, finda a vida. O roteiro do filme, de idas e vindas, de contrapontos, de realidade e alucinação, faz crer que Margaret revolvia-se em lembranças, sofrendo por sua postura controladora, mas sem ter controle da própria vida.

A família de Margaret Thatcher certamente faz o possível para preservar a imagem/memória de seu ente. É compreensível que portanto o roteiro seja forçosamente ingênuo, para não causar maiores descontentamentos. Sem desmerecer o empenho desta produção, muito válida como arte e ficção, a vontade que fica é que produzam um outro filme, mantendo Meryl Streep no papel de Thatcher, pois já está pra lá de ensaiada. Afinal, a intenção não é exaltar ou denegrir Margaret Thatcher, mas sim a de compor narrativas acerca de uma personagem de suma importância para o século XX, ícone político das sociedades capitalistas contemporâneas.

Como me é penoso conter meu lado fatalista, extremada...vou liberar. O filme é tão vaselina que teve momentos que fiquei sem saber se a história era da Thatcher ou da Madre Tereza de Calcutá. Inspirado em “A Dama de Ferro” eu poderia produzir um filme sobre Saddan Hussein. Seria estilo Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas, só que com a família Hussein vagando, reproduzindo e prosperando no deserto, contando histórias de Sherazade e Saddan como arauto pregando uma meia dúzia de frases edificantes que Paulo Coelho chupa da cultura árabe! Vamos rodar! Vai figuração, gravando!

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