O fetiche da dona de casa

Farei hoje algo que não faço há tempos, uma crônica.

Luzia se levantou com os primeiros raios de sol. Há quem se dê ao luxo de ir da cama para o banheiro, só que Luzia tinha outro percurso. Sua rotina era a da cama para a cozinha, colocar no fogo uma chaleira com água pra passar um café. Enquanto a água esquentava ela ia ao banheiro, se ajeitar. Olhou-se no espelho, lavou o rosto, escovou os dentes e voltou pra cozinha.
José Carlos despertou com o cheiro do café fresco que tomava a casa. Esse sim, fazia o percurso da cama para o banheiro. Fez a barba, tomou banho, se arrumou e sem demora foi pra cozinha, tomar seu café fresquinho.
Enquanto José Carlos retalhava o queijo Luzia mirava aquele sujeito. Cinco anos. Como pôde o tempo lhe passar tamanha rasteira? No primeiro ano tudo eram flores, dava gosto de ver o homem sempre bem disposto, lindo, apaixonado, animado, falante, comparecendo até quando ela menos esperava. As vezes de manhãzinha, antes de ir ao trabalho. Saudosa disposição! Se antes o sujeito lhe dava atenção, carinho e prazer, agora lhe dava nervoso, tédio e trabalho. A mente de Luzia não parava de fazer comparações, das mais clichês possíveis, tudo dentro da oposição “antes e agora”.
Mas há que seguir a vida. Não mudou sequer o semblante, apenas se limitou a ficar com o olhar distante e a boca calada. E como pela manhã os humores nem sempre são os melhores, José Carlos nada reparou de anormal. Se por um lado Luzia se contrariava, por outro se compadecia, crendo que a vida é assim mesmo, com dias mais animados, dias menos.
José Carlos se despediu num tom despreocupado e Luzia lá ficou arrumando a louça do café, se divertindo passando a vassoura no chão, dando de comer aos cachorros, jogando uma água no quintal, arrumando a cama, dobrando lençóis, pondo roupa pra lavar, regando as plantas e enfim, deixando sua casa de subúrbio no jeito.
Numa pausa antes de fazer o almoço Luzia pensou que deveria se arrumar mais, investir no visual, comprar umas bijouterias, coisas para alegrar e reavivar seu ímpeto de mulher. Colocou uma sopa de ervilha no fogo, e foi dar um pulinho rapidinho no Centro, bater perna no Saara. Enfim, de Mesquita para o Centro do Rio, lá foi Luzia.
O Saara era um mundo se colorindo aos olhos de Luzia. Pessoas, camelôs, roupas, eletrônicos, acessórios, brinquedos, bijuterias, e um sem número inutilidades para o lar. Pensou ter achado o paraíso do plástico: prato, copos, bandejas, baldes, bacias, porta pregador, tigela, taça de sobremesa, espátula de bolo, concha de feijão...O dinheiro não era compatível com a quantidade de mercadorias inúteis desejadas por Luzia. Em abono da verdade sequer teria fim a dar àquele mundo de cacarecos. Continuava perambulando, linda, ouvindo gracejos daqui e dali. Os gracejos lhe eram muito bem vindos, polindo o ego meio abalado da dona de casa. Quantos mais ouvia, mais se empinava e sorria tímida.
Já numa de fechar o passeio Luzia saboreou uma esfiha com um copo de suco de caju, promoção de ocasião numa lanchonete. Traçada a esfiha passou o guardanapo de papel grosso na boca, o qual levou-lhe dos lábios o que lhe restava do batom. Respirou fundo, seguiu em direção ao ponto de ônibus, rumando para casa.
Ao chegar à esquina de casa ouvia crianças rindo, levadas de cachorros e muita gente dispersa na rua. Se aproximando mais, viu um caminhão do corpo de bombeiros e logo lembrou: a sopa de ervilha. Caiu no susto!
Abrindo vagarosamente os olhos, Luzia via as coisas turvas. Sentiu o toque firme de uma mão lhe amparando o braço e uma voz encorpada perguntando se ela estava bem. Conforme sua visão ia melhorando, Luzia ia amolecendo diante da imagem que se formava. Era o De Paula, segundo lera no bordado na lateral do uniforme. A troca de olhares não deixou dúvidas.
No dia seguinte a manhã foi bem diferente. José Carlos acordou com as malas prontas, com suas roupas ainda cheirando a fumaça do incêndio do dia anterior. A casa estava bagunçada, mas nem por isso Luzia a arrumou. Tomou um banho daqueles, ficou maravilhosa e pronta para a alegria. Hoje ela tinha um encontro marcado com o prazer: Ia ter com o De Paula. Eita fogo providencial!

Comentários

Cris Medeiros disse…
Bonito! Me lembrou uma passagem da minha vida...

Beijocas
Patrícia disse…
hehehe, o final é ótemo, mas eu gostei de uma passagem do meio, estaqui ó: "Luzia lá ficou arrumando a louça do café, se divertindo passando a vassoura no chão, dando de comer aos cachorros, jogando uma água no quintal, arrumando a cama, dobrando lençóis, pondo roupa pra lavar, regando as plantas e enfim, deixando sua casa de subúrbio no jeito". Eu me divirto um bocado arrumando meu cantinho. Sonho em morar só, e gostando, talvez nem case, hehe.
Ariane Dias disse…
Muito bom! Invejo as pessoas que sabem escrever crônicas. =D
Maldito disse…
Totalmente excelente!
Adorei!
Inté!
Robson Schneider disse…
"Fogo" providencial... com ou sem trocadilhos? hehehehe
Adorei aqui, abraço!
isabeau disse…
A Luzia se parece comigo!
beijos
яαiℓezα disse…
Eu tinha lido sobre!
Achei bacana e sacana aeoiaueoiae ;D
Muito bom !


Eu gosto daqui viu!

beijo!
me Gusta. disse…
muito bom!!!

a males que vem para o bem. Tadinho do José Carlos... não cuidou, perdeu.
Agora Luzia é feliz novamente!!!

Adorei a cronica!!!

beijos!
Lu Ribeiro disse…
maravilhoso, como sempre!!! qd vc vai me autorizar a reunir estas crônicas num livro? já te vejo sendo entrevistada pela Leda Nagle... pensa nisso, vc arrebenta!!! bjs
Anônimo disse…
taí uma coisa que eu não sei fazer: cronica.
Kamila Marques. disse…
Fiquei com medo quando comecei a me aprofundar no texto, estou para ficar noiva e essas coisas me fizeram pensar muito!

Adorei o blog, os textos!
Parabéns!
Lúh_Ana disse…
Ai que fogo ;]
muito bom!
Jannice Dantas disse…
Adorei o conto, principalment eo final! Pq será que os homens pensam que após certo tempo de relacionamento não se faz mais necessário a arte da conquista e da sedução?? O que importa somente são roupas limpas e passadas, a casa arrumada com um prato de comiga fumegante em cima da mesa? Dolorosa interrogação!!

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