Pós Modernidade em três tempos

O que é modernidade? Não nos faltam conceitos ou frases prontas para dar conta da categoria modernidade. Talvez haja uma espécie de unanimidade inocente que resolve a modernidade com a idéia de novo, e junto desse novo uma série de atributos positivos. Não pretendo desenvolver uma discussão densa sobre a modernidade, porém me instiga ilustrar um pouco do cotidiano de uma suposta pós modernidade, pautada mais especificamente no neoliberalismo, em três tempos.

No trabalho
Todos os dias, no horário destinado para o almoço, eu me direcionava para o enorme restaurante central da empresa para a qual presto serviços. No restaurante há filas para vários tipos de comida, desde os que devem evitar sal, passando pelas comidas pesadas, uma fila para massas, para omeletes, para comida japonesa e até para quem prefere saladas, como é o meu caso.
Bandeja, um prato, talheres. Eu ia selecionando os ingredientes e uma funcionária me servia. Tratava-se de uma rotina, já que raramente eu me dispunha a comer qualquer outra coisa. A moça que me servia passou a sorrir e me tratar com muito carinho, me achava magrinha, ficava preocupada que eu comia pouco, e sempre insistia em colocar mais disso ou daquilo conforme o meu gosto.
De bandeja em bandeja notei que a barriga da moça aumentava. Sim, ela me confirmou que estava grávida. Eu sempre brincava, sorria, mexia com a barriga dela, me interessava pelo pré-natal.
Decidi que iria dar um presente para o bebê. Queria comprar um presente bacana, mas seria prudente saber o sexo. Todos os dias eu perguntava se ela já sabia o sexo do bebê e nada.A confirmação do sexo do bebê demorava tanto que eu já estava indócil. Ou eu comprava logo um presente, ou acabaria não conseguindo presenteá-la. Tive a impressão de que ela seria afastada, não por licença maternidade, mas por demissão mesmo.
Eu estava certa, tinha mesmo que ter me adiantado com o presente, não consegui presenteá-la! Entretanto, quem foi afastada do trabalho não foi ela, fui eu.

Na Rua
Em todas as cidades do mundo há moradores de rua. Em Niterói, cidade onde moro, há um desses moradores de rua, por sinal bastante simpático e famoso. Ouvindo os gritos da molecada, anos e anos, aprendi que atende pela alcunha de “Tá ligado”.
É bastante comum a associação dos moradores de ruas a doenças mentais. Não sei o quanto isso tem de real e verificável, não sei o quanto isso é um mero clichê. Até mesmo porque em toda loucura há muita lucidez.
Dia desses eu pedalava pela orla e ao longe vi “Tá Ligado”. Quando fiquei próxima pedalei bem devagar, fiquei observando. Enquanto ele atravessava a rua falava alto ao celular. Falava muito, provavelmente com a esposa, e explicava o que ela tinha que fazer em casa, com as crianças, dizia que não iria demorar para chegar e mandava: beijo, amor. Tudo isso muito orgânica e tranquilamente!
Olhei a cena como olharia qualquer pessoa que fizesse o mesmo. Segui meu caminho e a ficha caiu! Ta Ligado tem esposa? Não. Tem filhos? Se tiver não lhe foram apresentados. Ele tem casa? Tão ampla a não caber em paredes, a rua. E o melhor: o celular dele teria créditos pra falar tanto e tão calma e pausadamente? Não. Louco, né? Ele é o reflexo escuro do que somos nós.

No shopping
Se a Modernidade nos forjou conceitos, entre eles está o par oposicional público e privado. O público é de todos, é externo, é o local da ordem estabelecida, das regras e dos direitos, da sociabilidade. Já o privado é um local onde pode-se criar regras, o indivíduo se investe de poder. Na pós modernidade é licenciosa a apropriação do local público, e por vezes até a invasão do privado.
Eu estava no centro de Niterói, fazendo hora entre um compromisso e outro. Cansada, queria sentar à sombra, refletir um pouco, olhar a paisagem, os passantes e até quem sabe ler. Para esse intuito uma praça pública vinha muito a calhar.
Descobri que na cidade em que moro são escassos e quando existentes depredados e abandonados os espaços públicos. Quando há bancos e cadeiras, não há sombra. Quando há sombras, nada de assentos. E em todo e qualquer local em que se pare há sujeira, um alguém que se incomoda com sua estranha presença e vários vagabundos à espreita.
O Centro da cidade já fora o local de praças, comércio e igrejas. Hoje tudo isso está no mesmo lugar, porém o lugar não é mais o mesmo. Por motivos diversos achei o centro hostil à minha parada, sendo propício se muito à circulação. Lá fui eu para o shopping Center.
Ar condicionado, lojas, ambiente termicamente controlado, luminosidade constante, segurança, entretanto, assim como a rua, é pra circular e consumir. Não há muitos locais para sentar, a não ser na praça de alimentação. Em outros termos, se quiser sentar é bom consumir.
Achei, finalmente, dois pares de bancos. Não para surpresa, os bancos são disputados. Na minha primeira investida não tinha lugar vago. Dei uma volta, olhei vitrines e novamente mirei os bancos, dessa vez tinha apenas um senhor, sentei logo ao lado. Em menos de 30 segundos brilhantemente concluí o porquê não tinha ninguém sentado ao lado do senhor: era insuportável.
O sujeito não tinha um, mas dois aparelhos celulares. Aparentemente não era um sujeito de negócios, para o qual o celular é o instrumento de trabalho. Enfim, o que ele fazia era selecionar músicas nos aparelhos e ouvi-las na máxima potência dos autofalantes dos aparelhos. Era como um DJ com duas pickup’s. Intercalava músicas entre um celular e outro. Parecia orgulhoso de sua seleção musical. Começou com Roxette “Must been love”, parou Beyonce no meio de “Halo”, introduziu Ne-Yo “Closer”, depois Akon “Feat kardinal off”, mas só ficou satisfeito com Jota Quest na frase “hoje eu preciso ouvir qualquer palavra sua/ qualquer frase exagerada”...pensei que era sugestivo, e eu poderia sem sacrifício dizer a ele pra ouvir as porras das músicas naquele volume na puta que pariu, na casa do caralho ou algo assim. Fiquei acompanhando essa violência não ao lado dele, mas ao redor, esperando o outro banco vagar. Diga-se de passagem que ele “expulsou” com essa trilha nada menos que seis pessoas que inadvertidamente sentavam ao seu lado. Achei de uma petulância, de um desrespeito, de uma ausência de noção de coletividade, que não consegui sair dali sem observar muito para escrever esse post como um protesto.
Querendo fazer um protesto, fique à vontade nos comentários!

Comentários

Lu Ribeiro disse…
no shopping de bangu tem um banquinhos maneiros, bem mais dos q já avistei nos outros... vem pra cá! rs
Mata Hari disse…
O melhor exemplo da modernidade pra mim, é a banalização do amor. Uma modernidade negativa, no caso. Beijão!
Priscila disse…
Aqui por onde moro, a modernidade anda tão tímida... mas ás vezes penso se isso é realmente ruim.
Unknown disse…
Gostei bastante. É de uma qualidade extrema a tua escrita descritiva das situações. Não sei se paras muito para pensar no que escreves ou se isso sai que nem um jorro de inspiração. Vai sendo difícil encontrar assim alguém que olha as coisas da vida de forma tão clara e normal sem muitos floreados e embelezamentos intelectuais que não servem para nada. Bem haja.
sevejocosilva disse…
Gostei do que escreveste. Da forma como captou os fatos e os descreveu. No entanto, apesar de "ta ligado", o grande isnpirador do escrito foi o dono dos celulares, que, não deve conheçer tanto as músicas quanto você. Pelo visto o gosto musical de voces combina, só na forma de ouvir, nasce ou nasceu a divergência influenciadora do escrito. No entanto, a razão está com você. A convivência boa e sadia, está a cada dia mais difícil. Gostei. Voltarei mais vezes. Ah! espero que já esteja reempregada e em local tão bom como, aparentemente, o anterior era e se realmente quiser dar o presente, encontrará u a forma de fazê-lo...
sevejocosilva disse…
Gostei do que escreveste. Da forma como captou os fatos e os descreveu. No entanto, apesar de "ta ligado", o grande isnpirador do escrito foi o dono dos celulares, que, não deve conheçer tanto as músicas quanto você. Pelo visto o gosto musical de voces combina, só na forma de ouvir, nasce ou nasceu a divergência influenciadora do escrito. No entanto, a razão está com você. A convivência boa e sadia, está a cada dia mais difícil. Gostei. Voltarei mais vezes. Ah! espero que já esteja reempregada e em local tão bom como, aparentemente, o anterior era e se realmente quiser dar o presente, encontrará u a forma de fazê-lo...
sevejocosilva disse…
...tão bom quanto... e não como (foi mal)
O Ministério recomenda: evite os shoppings. Sobretudo em períodos comercialmente festivos.
O Ministério recomenda: evite os shoppings. Sobretudo em períodos comercialmente festivos.

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