Há limites entre o público e o privado?

Todos os conceitos que parecem ter sentido social com alguma homogeneidade, numa concepção global, no Brasil é experimentado de maneira muito peculiar. E digo peculiar como um eufemismo bem razoável, pois a idéia é a de uma maneira única.

Nesse esteio, há dois conceitos que me intrigam sobreforma: o público e o privado. A inquietação não parte da compreensão de um e outro, mas sim no hiato que estes apresentam entre o conceito e a prática. A saber, o privado é o local restrito, onde impera as normas específicas, em geral informadas por um patriarca. Nesse espaço, as pessoas são privadas de direitos. Em oposição, há o espaço público onde as pessoas passam a ser indivíduos, portadores de direitos, compondo e participando de uma coletividade maior. Compreendidos os conceitos debilmente simplistas, resta olhar ao nosso redor para notar as faltas gravíssimas, de tão corriqueiras quase não damos conta, e de tão grosseiras que mais se assemelham a chacotas.

Praia de Icaraí, Niterói, Rio de Janeiro. A prefeitura constrói mesas e bancos de concreto, fixados no calçadão da praia. A luz do dia, ou melhor, ao sol inclemente do meio-dia, um sujeito senta-se com sua mãe nos bancos de uma mesa. Saca da bolsa um prego e uma marreta. Mira no centro da mesa e começa a dar marretadas, despreocupado com quem passa e observa a cena. Após uns minutos de trabalho, abre um guarda sol e o coloca no buraco que acabou de fazer. Eu me pergunto quem pediu para ele fazer esse buraco? Aliás, pra essa pergunta a resposta é até óbvia, muito provavelmente a mãe. A pergunta correta é quem autorizou fazer um buraco na mesa? Certamente não fui eu, menos ainda a prefeitura. Ainda tenho que me dar por satisfeita pelo bom senso do sujeito de furar a mesa no meio, pois poderia ser sem noção e tentar furar na quina por parecer mais estiloso.

Achou bonito? Nessa mesma praia há coisa melhor! Um grupo de amigos fez um recuo de concreto, do calçadão para areia, e ainda instalaram um toldo. Tudo isso para poderem jogar seu carteado distintamente, com direito a farnéis nos finais de semana e churrasco em dias especiais. Churrasqueira e isopor? Fácil! Eles guardam ali na praia mesmo, pois também construíram um vazado com tampo e cadeado. Afinal, é chato ter que carregar as tralhas para lá e para cá, como burros com cangalhas. Muito mais cômodo ter tudo ali na praia mesmo.

Jardim São João, centro de Niterói, Rio de Janeiro. Sobre um caixote de maça gala um caderno e uma caneta. Fazendo do caixote mesa um sujeito sentado num banco. Em frente ao caixote um cartaz escrito “Frete”. Caso não dê para notar, trata-se do escritório do sujeito. Isso seria nada, não fizesse parte do escritório um telefone público. O sujeito reservava um telefone público para seu uso exclusivo. Numa tentativa desesperada de justificar tal ato identifico o problema na mania brasileira de apelidar as coisas. Quando se fala em telefone público, o público já dá a idéia. O nome “público” é uma dica para as pessoas entenderem que é direito de todos fazerem uso daquele objeto e/ou recurso. Contudo, ao apelidarem de orelhão, vê-se logo que a coisa é de quem dela se apropria.

Ouso dizer que o orelhão é um dos campeões do uso equivocado. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, terceiro andar, há um telefone público. Neste instituto, mais do que em qualquer rua, as pessoas têm o dever de compreender as concepções de público e privado. Contudo, é triste notar que a compreensão em nada se reflete nas práticas. Caminhei em direção ao telefone para ligar para casa e uma menina me abordou. Perguntou-me se eu ia usar o telefone. Primeiramente, se vou ou não usar isso só diz respeito a mim. Mas, a fim de evitar antipatia, respondi que sim. A menina fez cara de aborrecida, e perguntou se eu não tinha celular. Meus olhos arregalaram, afinal, já era a segunda pergunta que eu não tinha necessidade de responder. Agarrei na mão de Deus, contei até mil, entoei mantras, cheguei ao nirvana, sorri falsamente e disse que tenho. Ela continuou a inconveniência dizendo que estava esperando uma ligação e que era muito importante. Alcancei que ela esperava uma ligação importante! Só não entendi o que eu tinha a ver com isso. Enfim, a graciosa estava apenas fazendo as inscrições de disciplina via telefone. O irmão em casa acessava a internet e dizia para ela quais eram as disciplinas disponíveis. Ela escolhia uma disciplina e desligava. Depois esperava ele ligar para confirmar se a inscrição foi efetivada. Em média nos inscrevemos em 7 disciplinas por semestre, dá para ter idéia do quanto ela privou as pessoas do uso daquele telefone.

Não apenas porque sou abusada, mas interrompi sem cerimônia as inscrições dela. Falei com quem tinha que falar e depois fui embora. Claro, com os ouvidos nas costas aptos a captarem qualquer reclamação dela que me servisse de estopim para uma boa discussão.

O interessante dessa discussão é que, caso você se incomode com esses atos tão simples, que em nada ferem a coletividade – penso que os que fazem uso inapropriado dos recursos públicos se alimentam dessa certeza - é logo taxado de chato, encrenqueiro, enjoado e outros mais. Aliás, o mais comum é a idéia da inveja. Ela abarca uma amplidão de possibilidades quase absurdas. De minha parte apenas desejo esclarecer que não tenho a menor intenção de mudar o mundo. Contudo, não me permito ficar calada diante da desordem. Menos ainda quando ela objetivamente me lesa e incomoda. Não vou ficar atônita assistindo ao caos.

Comentários

Anônimo disse…
Parabéns pelo texto!
Leitura agradável e bem original.

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