Lembranças Molhadas da Infância

A frequência dos leitores não está diretamente relacionada com a minha disposição para escrever. Por ora isso muito me favorece!Não me ofende escrever pra ninguém ler. Estaria mesmo perdida caso me desse a esse trabalho. Enfim, me inspiram os dias chuvosos.
Ontem eu estava lembrando da infância. Falo isso como se fosse uma grande novidade, algo extraordinário eu lembrar da infância. Criatura saudosa sou eu.
Pois bem, dias chuvosos parecem inibir as brincadeiras. Mera e equivocada impressão. São nesses dias que as brincadeiras precisam ser mais sofisticadas, arguciosas e que explorem os limites.Nem que seja apenas o do bom senso. A bem da verdade todas as brincadeiras de infância são atividades cruéis que testam limites.
Choveu. O que fazer? Morando num condomínio, com prédios de 14 andares, a pergunta nem tem sentido, tão óbvias que são as possibilidades. A primeira é pegar o elevador, escolher um andar, um apartamento, tocar a campainha, voltar para o elevador e sumir. Bom mesmo é ter um durex, pois como dizia Claudinha: é pra tocar melhor. E tocava! Direta e ininterruptamente, até que o dono da casa arrancasse o durex da campainha, ou, na pior das hipóteses, até que a campainha queimasse.
Vandalismo? Não, teste dos limites. Ainda nas atividades dependentes do elevador, tinha a corrida dos elevadores. Apertávamos todos os andares, e quem chegasse primeiro no térreo ganhava. Esporro! Os condôminos nem sempre respeitavam as nossas modalidades competitivas.
Outra brincadeira de elevador, esta muito pachorrenta, era a de ascensorista. Colocávamos um banco dentro do elevador e danávamos a perguntar o andar que as pessoas desejavam ir. Quando a pessoa apertava por si o botão, brigávamos. E se apertássemos para a pessoa e ela ousasse não agradecer, chamávamos de “sem educação”. Essa brincadeira sim era um preparo para a vida adulta, uma reprodução do que bem ocorre no cotidiano. Por tudo e nada criança toma esporro, e então era a nossa vez de reproduzir essa lógica imbecil de ralhar a torto e a direito.
E como esquecer das brincadeiras “ta na chuva pra se molhar”?! Tinha aquele bando de crianças de bicicleta passando em velocidade pelas poças. Algumas de água, outras de lama. Essa modalidade era carinhosamente denominada Motocross. Derrapagens, quedas, tentativas de permanecer de pé na bicicleta atolada na lama, valia tudo.
Outra brincadeira molhada era na quadra polivalente. A quadra mais parecia uma piscina, e estávamos nós a brincar escorregadiamente. Tinha o mergulho de peito e o pique. No primeiro, tal como um rodo vínhamos arrastando a água com os braços abertos. No segundo, um clássico da infância, a dificuldade não era um pegar o outro, mas se manter de pé. Aliás, mais difícil que isso era sair ileso a essa tentativa desesperada mas nem sempre frustrada de fratura. Alguns dentes ficaram comprometidos nessa farra, e umas escoriações eram consideradas lucro. Lembro-me de cair de costas certa vez. É dos piores tombos. Minha cabeça bateu no chão com uma velocidade e força que durante uma semana figurei como doublé de Robocop.
Havia brincadeiras mais suaves, em contudo onerar a perversidade que vive harmoniosamente dentro de cada criança. Estendíamos lençóis e mais lençóis entre os carros e nos cantos da garagem, como fossem tendas árabes. Bom mesmo que nossos pais se alimentassem dessa ilusão. Éramos crianças dos anos 80, período em que o Rio de Janeiro foi muitíssimo castigado por chuvas, abundaram enchentes, enxurradas e inundações. Nossas brincadeiras não tinham como deixar esse rico repertório da realidade que nos atingiam através de telejornais. Nossas tendas em verdade eram barracos. E de momento a outro, quando cismávamos que a chuva aumentou, nossos barracos eram destruídos, levados pela força das águas. A culpa disso era o lixo que se acumulava nas encostas. Íamos para abrigos, dizíamos que morávamos na favela do Rato molhado, da Lagartixa, da lacraia, não faltavam nomes para o nosso humor “puro” e já sarcástico. E a leptospirose? Era só disso que nossas bonecas morriam!
E assim passavam manhãs, tardes, noites, dias, semanas, meses e anos. Entre gripes, resfriados, bronquites, asmas e pneumonias, safaram-se todos.Saudade danada da infância! Dá-lhe chuva...

Comentários

Lu Ribeiro disse…
vc escreve pra ningu�m, mas olha ei aqui "travez". Leptospirose? Vc � d+! Vou roubar seus textos, publicar um livro e ser atra�o do alras Horas.
bjs

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